quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Tomás de Aquino - O Pregador da Razão e da Prudência

Doutor da Igreja inverteu prioridades no pensamento medieval, dando ênfase ao mundo real e ao aprendizado pelo raciocínio.


1. A vida 

Tomás nasceu em Roccasecca, reino de Nápoles, condado de Aquino, em 1225. Alguns historiadores dizem que a região na qual Tomás nasceu pertencia ao reino da Sicília. Filho de nobres, seu pai era o conde Landolfo Aquino, teve sua primeira iniciação às letras no mosteiro de Monte Cassino. Lá, de 1230 a 1239, foi acompanhado pelo seu tio paterno, o abade Sinibaldo. Em 1239 transferiu-se para a Universidade de Nápoles, onde conheceu os Frades Pregadores (Dominicanos), ordem religiosa que havia sido fundada recentemente, em 1215, por Domingos de Gusmão. Em 1244, o jovem Tomás fez-se membro desta ordem. Ao ter que se transferir para Paris, a fim de completar os seus estudos, sofreu por parte da família forte resistência. Seus irmãos o sequestraram, tentando de todas as formas evitar o seu ingresso na Ordem. Chegaram ao ponto de enviar-lhe, certa noite, uma mulher – prostituta mui sedutora – para arrancar-lhe a vocação. De acordo com algumas narrativas, o jovem tê-laia posto em fuga com um tição que havia tirado da lareira. Retomando a caminhada a Paris, na companhia do mestre geral da Ordem, João, o Teotônico, aí chegou por volta do ano 1245 e tornou-se discípulo de Alberto Magno. Ainda com Alberto, nos idos de 1248, Tomás parte para Colônia, onde ajuda o mestre a fundar um Studium Generale e, em 1250/1, é ordenado sacerdote. Seu magistério começará em 1252, quando, retornando a Paris, passa a lecionar: primeiramente, como Bacharel Sentenciário, e depois, a partir de 1256 a 1259, como Mestre Regente de Teologia.

Em 1260, Irmão Tomás é enviado a Nápoles para organizar os estudos da Ordem. O papa Urbano IV, em 1261, designa-o para ensinar em Orvieto. No ano de 1264, o mesmo Pontífice institui a festa do Corpo de Cristo (Corpus Christi) e pede a Frei Tomás que componha os hinos, as leituras e as orações, bem como a missa da Festa. O hino das Vésperas e o de Laudes, assim como o Adoro te Devote, foram adotados pela liturgia da Igreja e só vieram a cair em desuso após o Vaticano II.3 Em 1267, Clemente IV (Urbano IV havia falecido em 1264) convoca o Aquinate para participar de sua corte em Viterbo. Tomás volta a Paris em 1269 e aí leciona até 1272. Neste mesmo ano, retorna ainda à Universidade onde estudou quando jovem – Nápoles – na qual passa a exercer a regência em Teologia. Chamado para o Concílio de Lyon pelo Papa Gregório X, e fatigado por um trabalho realmente “sobre- humano”, morre a caminho do Concílio, no mosteiro de Fossanova. Rezam certas fontes que, no leito de morte, Frei Tomás ainda teria encontrado forças para comentar o livro do Cântico dos Cânticos; tal comentário, no entanto, nunca foi encontrado. Encerramos este pequeno itinerário, no qual procuramos dar a conhecer um pouco da vida de Tomás, com as últimas palavras atribuídas a ele. Tê-las-ia dito, ao receber pela última vez o viático:

"Recebo-te, preço da minha salvação; por teu amor estudei, vigiei, trabalhei; submeto ao julgamento da Santa Igreja tudo o que ensinei sobre o Sacramento do Corpo de Cristo e os outros sacramentos."


2. A obra 

Sobre a obra de Tomás, é significativo o testemunho de seu maior mestre: Alberto Magno. Segundo conta a tradição, este lhe teria dado o apelido, muito instigante por sinal, de “O Boi Mudo da Sicília”. De fato, o mestre, ao perceber a genialidade do seu aluno de corpo avantajado e bastante introvertido, teria exclamado, entusiasticamente: “Nós o chamamos de Boi Mudo, mas um dia ele dará mugidos, com o seu ensino, que ressoarão no mundo inteiro”. Com efeito, toda a obra de Tomás – salvo, talvez, a Suma Contra os Gentios – apresenta um caráter didático, que testifica a sua procedência do ensino e a sua destinação a ele. Todavia, esta perspectiva didática e escolar não elimina o caráter místico que perpassa o pensamento do Aquinate; é o que frisa Frei Reginaldo, dileto discípulo de Frei Tomás: Todas as vezes que ele se punha a estudar, disputar, ensinar, escrever, ditar, ele recorria antes à oração, pedindo com lágrimas abundantes poder de penetrar os segredos da verdade. E freqüentemente esta oração produzia a clareza sobre questões das quais, anteriormente, ele não entrevia a solução. Digamos algumas palavras sobre as três principais obras de Tomás. As duas Sumas, segundo todos os historiadores, são os lugares privilegiados onde se deve buscar, antes de tudo, o primeiro contato com a doutrina de Tomás de Aquino. Acrescentaremos, ademais, o Compêndio de Teologia. Seguiremos a cronologia: A. A Suma Contra os Gentios (1260 a 1264) era para ser apenas um manual de instruções posto a serviço dos missionários cristãos que iriam confrontar-se com as doutrinas filosóficas dos árabes. Entretanto, tal obra parece ter excedido à sua primeira destinação. Das grandes obras de Tomás, foi a única a que conseguiu pôr termo. Foi composta a pedido de Raimundo de Pena Forte, famoso canonista e confrade do Aquinate. A compreensão do “método” adotado é indispensável para a apreensão da teologia de Tomás de Aquino. Dividida em quatro livros, versam os três primeiros somente sobre aquelas verdades que a razão natural pode alcançar, e o quarto aborda unicamente os mistérios da fé. Eis, nas palavras do próprio Tomás, o plano da obra:

"Pretendo proceder nesta obra conforme o método que nos propusemos, em primeiro lugar envidaremos esforços para o esclarecimento daquela verdade professada pela fé e investigada pela razão, apresentando argumentos demonstrativos e prováveis, alguns dos quais fomos buscar nos livros dos filósofos e santos, e pelos quais a verdade seja confirmada e o adversário, confundido (I, II e III). Em segundo lugar, partindo das coisas mais claras para as menos claras, procederemos, na manifestação da verdade da fé que exceda a razão, desfazendo as razões dos adversários e, declarando, mediante razões prováveis e de autoridade, a verdade da fé, na medida em que Deus nos auxilie."

B. A Suma Teológica ou Suma de Teologia (1265 a 1274) é a obra-prima do Aquinate. Ela foi composta para os iniciantes em teologia, daí o seu caráter acentuadamente didático: 

"O doutor da verdade católica deve não apenas ensinar aos que estão mais adiantados, mas também instruir os principiantes, segundo o que diz o Apóstolo: ‘Como criancinhas em Cristo, é leite o que vos dei a beber, e não alimento sólido’. Por esta razão nos propusemos nesta obra expor o que se refere à religião cristã de modo mais apropriado à formação dos iniciantes."

 Esta obra magna, porém, permaneceu inacabada. Alguns especialistas defendem que o chamado Suplemento, que se encontra na Terceira Parte da Suma (A Suma de Teologia é dividida em três grandes partes), foi organizado pelo discípulo mais próximo de Tomás, Frei Reginaldo Piperno, o qual teria apenas compilado trechos de outras obras do mestre, mormente do Comentário às Sentenças.

C. O Compêndio de Teologia (1272 a 1273), texto escrito no final da vida de Tomás, foi dedicado ao seu caríssimo aluno, o já conhecido Reginaldo de Piperno: 

“Para te transmitir, caríssimo filho Reginaldo, um compêndio da doutrina cristã de modo a tê-lo sempre diante dos olhos (...)”. Esta obra, como a própria Suma Teológica, foi deixada inacabada. Na segunda parte, que versa sobre a esperança – o tratado constaria de três partes, que corresponderiam às três virtudes teologais (a fé, a esperança e a caridade) – os copistas acrescentam o seguinte testemunho: “Até aqui São Tomás de Aquino escreveu seu breve resumo da Teologia. Mas – ó como isso é doloroso! - antecipando-lhe a morte, deixou-o assim incompleto”.

3. Tomás e o Magistério

É significativo perceber que, ao longo de toda a História da Igreja do segundo milênio, o Magistério nunca deixou de recomendar a doutrina de Tomás como uma fonte de inesgotável sabedoria. Dela podemos acercar-nos com toda a confiança, certos de que nos achegamos às águas puríssimas da sã doutrina. Ouçamos alguns testemunhos, auferidos de declarações do Magistério, que evidenciam a reverência prestada pela Igreja à filosofia e à teologia de Tomás de Aquino: 

Papa João XXII (1318): “Ele só aluminava a Igreja mais que os outros Doutores; nos seus livros o homem aproveita mais em um ano que durante toda a sua vida”; 
Papa São Pio V (1567): "A Igreja fez sua a sua doutrina teológica, por ser a mais certa e a mais segura de todas”; 
Papa Leão XIII (1892) "Se se encontram Doutores em desacordo com Santo Tomás, qualquer que seja o seu mérito, a hesitação não é permitida; sejam os primeiros sacrificados ao segundo”; 
Papa São Pio X (1914): "Se a doutrina de algum Santo ou de algum Doutor foi reconhecida por Nós, ou por nossos Predecessores, com louvores especiais, estando esses louvores unidos ao convite e à ordem de a retomar ou defender, facilmente se entende que foi recomendada na medida em que está de acordo com os princípios de S. Tomás de Aquino ou que a eles não se opõe de modo algum”; Papa Clemente VIII: "Os livros de S. Tomás estão escritos sem nenhum erro”; 
Papa S. Pio V "A Doutrina de S. Tomás, pela qual iluminou a Igreja, é uma Regra certíssima da doutrina cristã”; Código de Direito Canônico (c. 1366, 2º): "Os professores nas escolas de filosofia racional e de teologia, no ensino destas disciplinas para os alunos devem observar santamente o método, a doutrina e os princípios do Doutor Angélico”; 
Papa Paulo VI: “É a primeira vez que um Concílio Ecumênico recomenda um teólogo, e este é precisamente S. Tomás de Aquino"; 
Papa Paulo VI: "A Igreja quis reconhecer na doutrina de S. Tomás de Aquino, a expressão particularmente elevada, completa e fiel quer do seu Magistério, quer do 'sensus fidei' de todo o Povo de Deus; ... A Igreja confirmou com a sua autoridade a Doutrina de Santo Tomás, e serve-se dela como de um instrumento de grande eficácia, a ponto de o incluir, de algum modo, assim como e até mais do que qualquer outro de seus Grandes Doutores, no âmbito do seu próprio Magistério”; 
S. Pio X: "A doutrina de S. Tomás foi sem interrupção recomendada pela Santa Sé”.

4. Tomás e a teologia

4.1. Deus como sujeito da teologia

Conta-se que o menino Tomás, oblato em Monte Cassino, teria perguntado a um abade: Quem é Deus? Pois bem, todos os comentaristas do pensador napolitano, são unânimes em dizer que a sua vida e a sua obra nada mais foram do que um esforço para responder a esta pergunta: “Tomás teria um dia perguntado: ‘Quem é Deus?’. Sua vida foi dedicada inteiramente, de ponta a ponta, a responder esta pergunta”. Neste sentido, é particularmente luminoso, o artigo sétimo da primeira questão da Suma Teológica, onde Tomás coloca Deus como sujeito da teologia. Ao se perguntar se Deus é o sujeito da Teologia, responde sem pestanejar que sim, porquanto é sujeito de uma ciência aquilo do que essa ciência trata. Ora, a teologia, conforme indica a própria etimologia da palavra, pretende ser um discurso sobre Deus. Logo, o sujeito desta ciência é o próprio Deus. Por conseguinte, como teólogo, o ideal do Frade Dominicano não era outro senão contemplar a Deus para depois transmiti-lo aos outros. Os seus primeiros biógrafos narram que, no fim de sua vida, ao celebrar a Santa Missa, por ocasião da Festa de São Nicolau, Tomás teve um êxtase e comentou com o seu discípulo e confrade Reginaldo de Piperno: “Não posso mais; tudo o que escrevi me parece palha em comparação com o que vi (...)”. De resto, alguns historiadores relatam outro sugestivo episódio, qual seja, que um dia, ao orar diante do crucifixo, este lhe teria falado: “Tomás, escreveste bem a meu respeito, que recompensa devo te dar por teu trabalho?”. Ao que o Aquinate teria respondido: “Senhor, nada mais que vós mesmo”. Estamos diante de um teólogo que tinha na contemplação mística a fonte primaz da sua ciência, vejamos como ele estrutura a sua sabedoria teológica.

4.2. As duas teologias: a natural e a revelada

Agora bem, existem, na concepção de Tomás, dois modos de conhecermos a Deus antes de vê-lo, face a face, na visão beatífica. Um é aquele pelo qual a razão, a partir das suas próprias faculdades, eleva-se a Deus por meio das coisas criadas; outro, é quando Deus mesmo, por sua libérrima vontade, propõe ao gênero humano certas verdades acerca da sua vida íntima que excedem a razão natural e que são, por isso mesmo, propostas para serem cridas e não demonstradas. Ratificando, trata-se, no primeiro caso, da razão que ascende a Deus por meio das coisas criadas; no segundo, é Deus que se digna descer até nós por meio da revelação. Contudo, quanto ao objeto material, pode existir identidade entre estes dois modos de conhecimentos, porquanto ambos dizem respeito às coisas divinas; já no que toca ao objeto formal, existe uma diferença notável entre as duas ordens: no conhecimento natural sobre Deus, é o homem, através unicamente de suas faculdades naturais, quem chega a conhecer certas verdades acerca de Deus, e isto se dá por via demonstrativa; no conhecimento de Deus pela fé, é Deus quem propõe ao homem verdades que excedem ao intelecto humano e que, portanto, não podem ser demonstradas, mas devem ser cridas. A estes dois modos de se conhecer a Deus, correspondem duas ordens de verdades conducentes às coisas divinas. Uma é aquela verdade que excede a capacidade da nossa razão. Por exemplo: o fato de Deus ser Trino; outra, é aquela verdade que a própria razão pode provar, é o caso da existência de Deus e da sua unicidade. Ora, destas duas ordens de verdades, oriundas dos dois modos de conhecimento das coisas divinas que nos são acessíveis nesta vida, procedem, por sua vez, duas teologias. A primeira é a teologia natural, que a razão elabora; a segunda, é a teologia revelada, que parte do dogma. No que concerne à teologia natural, trata-se da coroa da especulação metafísica e é o ápice do conhecimento humano. De fato, toda filosofia, diz Tomás, encaminha-se para o conhecimento de Deus como para o seu fim último. Agora bem, dois são os caminhos pelos quais os filósofos chegaram a saber algo sobre a essência divina: o primeiro consiste em afastar de Deus tudo o que é próprio das criaturas: é a via da negação (via remotionis); o segundo consiste em atribuir a Deus, causa infinita de todas as perfeições encontradas nas criaturas, as perfeições puras que encontramos nelas de forma finita e parcial, realizadas: é o procedimento analógico. Finalmente, o fundamento último de toda a teologia natural é a prova da existência de Deus. Sem ela, toda a abordagem sobre Deus que a razão elabora perde o seu sustentáculo. Já no que toca à teologia revelada, deve-se dizer que ela é mais perfeita que a teologia natural. Com efeito, na teologia natural, que é parte da filosofia, consideramos primeiro as criaturas e, depois, Deus. Na doutrina da fé, acontece o contrário: considera-se primeiro Deus e, à luz de Deus, os seres criados. Assim sendo, a doutrina sagrada é superior à teologia natural, visto que por ela nos aproximamos mais da ciência de Deus que, conhecendo a si mesmo em sua essência, conhece também as criaturas, enquanto verifica que a sua essência é participável. A ordem teológica apresenta ainda uma outra vantagem que, para longe de estorvar a filosofia, dá-lhe, antes, um toque de perfeição. Como vimos, a teologia natural parte da criatura para dela chegar ao Criador. Ora, isso equivale a dizer que ela parte do que é anterior para nós para aquilo que é anterior de modo absoluto. Neste sentido, a teologia sobrenatural obedece melhor à ordem do real: partindo de Deus, ela parte do que é anterior de modo absoluto para aquilo que é posterior, isto é, a criatura. De fato, se partimos das criaturas, isto se deve ao fato de o nosso intelecto ser finito, pois se obedecêssemos à ordem das coisas como de fato elas são, partiríamos primeiramente de Deus, princípio e fim de todas as coisas, para só então chegarmos às criaturas, que são os seus efeitos. Ora, quando a filosofia se submete a ordem teológica, tem a possibilidade de obedecer àquela ordem que ela seguiria se o nosso espírito não fosse finito. Ademais, a filosofia, enquanto segue a ordem teológica, não precisa abdicar dos seus próprios métodos. A subserviência, aqui, consiste unicamente na ordem a ser seguida na exposição. Embora distintas, a teologia natural e a teologia revelada não entram em desacordo. A ciência do aluno preexiste na ciência do mestre que o ensina. Ora, os princípios naturalmente evidentes foram infundidos em nós por Deus, porque Deus é o criador da natureza. Por conseguinte, tais princípios preexistem na sabedoria divina. Destarte, tudo o que contrariá-los, contrariará, ipso facto, a sabedoria divina, e não pode estar em Deus. Portanto, as verdades da fé, que recebemos também da sabedoria divina por meio da revelação, não podem entrar em desacordo com o nosso conhecimento natural, posto que também ele, em seus primeiros princípios, provém da sabedoria divina. Passemos a analisar como Tomás concebe a teologia enquanto ciência.

4.3. A teologia como ciência

Existe, diz Tomás, dois tipos de ciência: há aquela que retira os seus princípios da própria luz natural da razão e aquela que busca os seus princípios à luz de uma ciência superior. Ora, a sacra ciência, acentua Tomás, é uma ciência que toma os seus princípios da própria ciência de Deus e dos bem-aventurados e, por isso, ela é a mais sublime de todas as ciências.

4.4. Fé e teologia

Podemos então trazer à luz outra distinção capital para o pensamento tomásico, a saber, a distinção entre fé e teologia. A fé é o fundamento da teologia, pois a teologia é a razão iluminada pela fé (ratio fidei illustrata). Diferentemente do que acontece no ato de fé, no qual o fiel adere às verdades somente pelo fato de terem sido reveladas por Deus, em teologia o teólogo adere a elas não somente porque foram reveladas por Deus, mas também por apresentarem razões verossímeis e por haver um nexo inteligível entre elas. Enquanto a fé se constitui como uma virtude infusa, a teologia se apresenta como um dom adquirido; a fé é sabedoria concedida pelo Espírito Santo; a teologia é sabedoria que se adquire pelo estudo. Tal como os princípios de uma determinada ciência não necessitam ser demonstrados pela mesma ciência, que os toma: ou de uma ciência superior ou da própria luz da razão, visto serem condição de possibilidade da sua própria existência, assim também a fé, por estar para o crente como os primeiros princípios naturais estão para a razão, não precisa ser demonstrada pela teologia, que a toma como princípio procedente da própria ciência de Deus e dos bem- aventurados. Nas palavras de Pe. Chenu, a teologia é a fé com status de ciência (statu scientiae), não somente enquanto é refletida pelo teólogo, mas também enquanto ela mesma é tomada por ele como de uma ciência superior. Agora bem, algumas verdades que foram reveladas por Deus podem, de per si, ser conhecidas pela luz natural da razão. O Frade de Roccasecca dá a esta questão uma solução que se tornará a mais precisa no que tange à distinção entre fé e razão. Tal solução pode enunciar-se assim: uma verdade, pelo próprio fato de ser demonstrável pela razão, não é verdade de fé, mas verdade natural. Com efeito, a fé formalmente diz respeito somente àquelas verdades que são, ipso facto, indemonstráveis. Contudo, permanece o fato de que Deus também revelou verdades que, a princípio, poderiam ser conhecidas apenas a partir da razão. A esta aparente contradição, Tomás aduz vários motivos pelos quais julgou Deus ser conveniente revelar até mesmo aquelas verdades que poderiam ser alcançadas naturalmente. Dentre estes motivos, destaca-se: destas verdades depende a nossa salvação; ora, somente com muito labor alguns poucos homens conseguiriam chegar ao conhecimento delas e não sem mescla de erros; donde, para que todos tivessem acesso a estas verdades com mais rapidez e sem perigo de errar, Deus dignou-se revelá-las. São verdades de fé quanto ao modo, mas não quanto à essência. Passemos à análise da relação entre teologia e apologética.


4.5. Teologia e apologética

Como vimos, há uma ordem de verdades reveladas que, embora quanto ao modo estejam reveladas, são naturalmente cognoscíveis. Destarte, nem tudo o que é revelado é mistério exclusivo da fé. Ora, este fato abre as portas do cristianismo para o diálogo com os não crentes. Sendo assim, no confronto com os adversários da fé, é conveniente valer-se destas verdades demonstráveis contidas na revelação: seja para refutar os seus erros e persuadi-los da veracidade da fé cristã, seja para convencê-los da credibilidade da fé cristã. Quanto à segunda ordem de verdades, qual seja, aquelas que excedem totalmente as nossas faculdades naturais, o procedimento deve ser outro. No que toca aos gentios, somente pela Bíblia pode-se tentar convencê-los da conveniência destas verdades transcendentes. Já para os crentes, podem ser apresentadas algumas razões verossímeis no que toca a estas verdades, mediante as quais possam ser edificados. No entanto, não seria adequado apresentar estas mesmas razões verossímeis aos adversários. Com efeito, agindo desta forma, poderíamos levá-los a pensar que cremos nestas verdades por razões tão frágeis, e isto, deveras, só confirmá-los-ia nos seus erros. De fato, não cremos em verdades que ultrapassam o nosso entendimento a não ser que nos tenham sido reveladas por Deus.

Conclusão

Embora em si mesma a verdade primeira, que é o próprio Deus, seja simplicíssima, para nós, pela finitude do nosso espírito, é captada segundo duas ordens. A primeira ordem de verdades concernentes às coisas divinas é aquela que, partindo das criaturas, mediante uma elaboração da razão, chegamos até Deus. Ora, desta ordem de verdades nasce a teologia natural. A segunda ordem é aquela que, partindo do Deus que se revela, chegamos às suas criaturas, que conhecemos, desta feita, à luz da Sua revelação. Esta é a ordem da fé, a qual pertence a teologia revelada. Com efeito, ela é superior à anterior, porque se assemelha mais ao conhecimento de Deus que, conhecendo-se a si mesmo, conhece, em si, todas as coisas, posto que a essência divina é participável. Ademais, a teologia natural, que é a coroa da metafísica e o ápice do conhecimento natural humano, quando obedece à ordem da teologia revelada, sem negar os procedimentos que lhe são próprios, eleva-se e torna-se mais perfeita, visto que, quando adotamos a ordem da teologia revelada, partimos do que é anterior de modo absoluto, Deus, para daí descermos às criaturas, que são os seus efeitos. Além disso, deve-se dizer que a teologia revelada é, de fato, uma ciência. Não, decerto, como aquela ciência que parte dos próprios princípios da razão para daí inferir as suas conclusões, mas sim como aquelas que, partindo dos princípios adquiridos de uma ciência superior, deduz as suas próprias conclusões. De fato, como a geometria toma os seus princípios da matemática, a teologia recolhe os seus da ciência de Deus e dos bem- aventurados, que lhe são revelados nos dogmas. A sabedoria teológica do Aquinate, portanto, não comporta apenas mistérios, mas também objetos demonstráveis unicamente pela razão, como é o caso da existência de Deus e da sua unicidade. Ora, isto a torna apta para entrar em diálogo com os não crentes. Por outro lado, a teologia de Tomás não se identifica com a fé pura, sequer quando estuda os dogmas. Com efeito, diferentemente do ato de fé, no qual assentimos às verdades divinamente relevadas tão somente em virtude da autoridade de Deus, em teologia, aderimos a estas mesmas verdades, não somente porque estas foram reveladas por Deus, senão também em virtude de elas próprias apresentarem razões verossímeis, que demonstram não serem contraditórias aos princípios naturais, e ainda por possuírem um nexo inteligível entre si.

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