quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Aborto: exemplo clássico de uma constitucionalização simbólica¹.


Em tempos em que engravidar ou abandonar uma gravidez é um dos temas principais de discussão pelo atual momento que a nossa saúde pública vivencia com a associação do vírus da zika adquirido pela mãe ao nascimento de bebês com microcefalia, nada mais propício do que evidenciarmos o modelo constitucional que o nosso país acaba adotando.  

Vamos entender primeiramente o contexto jurídico que o termo enquadra, quando, nas palavras de Marcelo Neves, em trabalho apresentado para a obtenção do cargo de Professor Titular da Universidade Federal de Pernambuco em 1992, a legislação simbólica do nosso país “...aponta para o predomínio, ou mesmo hipertrofia, no que se refere ao sistema jurídico, da função simbólica da atividade legiferante e do seu produto, a lei, sobretudo em detrimento da função jurídico-instrumental”.

Mas vamos entender do que se trata: Entende-se por “simbólico” algo puramente representativo, quem tem o caráter de um “símbolo”. No contexto em que o assunto será tratado, iremos abordar a função puramente “simbólica” de textos constitucionais carentes de concretização normativo-jurídica.  Neves determinou ambiguidade entre “símbolo”, “simbólico” e “simbolismo”. O autor propõe três fatores que caracterizam os tipos da legislação simbólica, e são eles: a) confirmar valores sociais, b) demonstrar a capacidade de ação do Estado e c) adiar a solução de conflitos através de compromissos dilatórios.

Com a intenção de confirmar valores sociais, Neves defende nesta tipologia que o legislador assumiria uma posição em relação a determinados conflitos sociais e, ao consagrar este posicionamento, dar-se-ia a “vitória legislativa” para o grupo que tem a sua posição amparada na lei, tornando-se superior a concepção valorativa, e considerada secundária a verdadeira eficácia normativa da lei.

Ainda seguindo a lógica de classificação dos tipos de acordo com Neves, esta mesma legislação simbólica teria o intuito de assegurar confiança nos sistemas jurídico e político. A resposta à sociedade em forma de legislação teria como objetivo amenizar insatisfações ocasionadas por determinado conflito, aparentando uma possível solução para aquele problema, de forma a mascarar a realidade. Neves ainda reforça que “Neste sentido, pode-se até afirmar que a legislação-álibi constitui uma forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas, desempenhando uma função ‘ideológica’”.²

Por último, o autor cita o adiamento da solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios, que neste caso, considerada como uma consequência relacionada a questão anterior. Prevendo a ineficácia da lei e transferindo a solução do conflito para um futuro indeterminado, resta a população e sociedade apenas a ampliação da ilusão que imuniza o sistema político citado anteriormente.

O Código Penal Brasileiro considera o aborto como um crime contra a vida nos seguintes casos: a) aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (Pena de detenção de um a três anos); b) aborto provocado por terceiro, sem consentimento da gestante (Pena de reclusão de três a dez anos); c) provocar aborto com o consentimento da gestante (Pena de reclusão de um a quatro anos). As exceções serão nos casos em que o aborto for praticado por médicos nas seguintes situações: a) a gravidez for resultante de estupro e a gestação for até a 20ª semana; b) se o feto for anencéfalo – em decisão do STF em 2012; c) se o feto apresentar risco de vida à mãe (neste caso pode ser feito em qualquer ponto da gravidez). Segundo juristas, os casos de fetos com microcefalia não se encaixam na mesma exceção daqueles com anencefalia porque a microcefalia não é incompatível com a vida.

Recentemente alguns posicionamentos do médico mais popular do Brasil, conhecido por quadros na televisão, vídeos em redes sociais e best-sellers como Estação Carandiru, o Dr. Dráuzio Varella, trouxeram à tona um dos exemplos relacionados a esta associação. Em defesa de que o aborto já é livre no Brasil, e que só é ter dinheiro para fazer em condições razoáveis (e que tudo diferente desta realidade fé falsidade e hipocrisia), coloca em evidência a concepção valorativa que a legislação sobre o aborto do nosso país foi legislada. O médico afirma ainda em entrevista que "a mulher rica faz normalmente (o aborto) e nunca acontece nada. Já viu alguma ser presa por isso? Agora, a mulher pobre, a mulher da favela, essa engrossa estatísticas. Essa morre”.³ Ainda fazendo relação ao poder das massas e da posição valorativa de grupos, o médico defende de que não considera correto que a maioria possa impor sua vontade sem respeitar a opinião das minorias, desrespeitando a democracia.

Dentro do contexto epidêmico cheio de incertezas vivenciado, a microcefalia vem sendo diagnosticada em média na 28ª semana de gravidez, com margem de erro de cinco semanas. De acordo com a Folha de São Paulo4, algumas grávidas brasileiras estão recorrendo ao aborto ilegal ao primeiro sinal de infecção pelo vírus da zika, mesmo sem confirmação se o feto tem ou não microcefalia. Três médicos relataram a Folha casos de mulheres que já tinham tomado esta decisão, sendo as mesmas casadas, com educação de nível superior, boas condições financeiras e que tinham planejado a gravidez e que, com o desespero da possibilidade da criança nascer com má formação, optaram pelo aborto. As gestações estavam entre a 6ª e 8ª semana de gravidez e foram interrompidas com o misoprostol (Citotec). O medicamento é obtido no mercado ilegal com disponibilização apenas a hospitais. Sua venda é proibida nas farmácias desde 1988.

Com foco na garantia de direito de escolha das mulheres e na saúde das mesmas, a antropóloga Débora Diniz do instituto de bioética Anis, atualmente faz parte de um grupo que prepara uma ação similar para pedir ao Supremo Tribunal Federal a legalização do aborto em gestações com bebês com microcefalia. Ela debate que a responsabilidade do Estado em garantir a erradicação do mosquito não aconteceu, e o responsabiliza. Trata também que, constitucionalmente, as mulheres não poderão ser “penalizadas pelas consequências de políticas públicas falhas”5, entre outras iniciativas.

O documento que está sendo preparado deve argumentar que a ilegalidade do aborto e a falta de políticas de erradicação do Aedes ferem a Constituição Federal em dois pontos: direito à saúde e direito à seguridade social. A argumentação deve ainda destacar a vulnerabilidade específica de mulheres pobres – já que a epidemia ainda se concentra em áreas carentes do país, especialmente no Nordeste.

"É preciso garantir a todas as mulheres, e não só às que têm acesso a serviços de saúde ou podem pagar um aborto ilegal", diz Débora à BBC Brasil. "Autorizar o aborto não é levar as mulheres a fazê-lo. Quem tem dinheiro e quer já faz. Justamente quem tem mais necessidade não pode ser privado do direito de escolher sobre a própria vida"5, afirma.

E durante essa discussão, ainda temos um ponto relevante a considerar:

Toda esta problemática enfatiza não só o modelo ultrapassado de nossa legislação simbólica voltada para o aborto envolvido por várias questões culturais e políticas, assim como enfatiza a necessidade de termos um olhar mais fiel e confiável numa constituição que de fato, amplie a cidadania, elabore mais leis concretas e que o judiciário tenha mais ações que apoiem a implementação de efetividade das normas constitucionais vigentes, dando a sociedade algo que faça sentido, superando seu caráter puramente retórico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

¹ O referido tema da “Constitucionalização Simbólica” foi exigido, dentre outros, no edital do IV Concurso para ingresso na Carreira de Defensor Público do Estado de São Paulo (2010). A apresentação se dará de acordo com o trabalho: Marcelo Neves, A constitucionalização simbólica, Col. Justiça e Direito, passim. O tema também foi objeto do programa “Aula Magna” da TV Justiça e pode ser assistido em: http://www.youtube.com/watch?v=15V5uTLfi2c (“A Constitucionalização Simbólica Revisitada”).

² Marcelo Neves, op. cit., p. 40

³ Entrevista Drauzio Varella a BBC Brasil acessada em http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/02/160201_drauzio_aborto_rs na data de 02/02/2016 às 16:57

4 Reportagem na Folha de São Paulo acessada em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/01/1735560-gravidas-com-zika-fazem-aborto-sem-confirmacao-de-microcefalia.shtml na data de 02/02/2016 às 16:34

5 Reportagem de Ricardo Senra, sobre o grupo prepara ação no STF por aborto em casos de microcefalia em notícia na BBC Brasil, acessada em http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160126_zika_stf_pai_rs na data de 03/02/2016 às 10:25h

Código Penal Brasileiro

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