terça-feira, 3 de maio de 2016

Constituição em Sentido Material vs Sentido Formal


1. Considerações iniciais
    Não faltam na teoria constitucional classificações e concepções acerca das Constituições: em relação à forma, escritas ou não escritas; quanto ao modo de elaboração, dogmáticas ou históricas; quanto à origem, populares (democráticas) ou outorgadas; quanto à estabilidade, rígidas, flexíveis ou semi-rígidas; ou, ainda, quanto à extensão, analíticas ou sintéticas
    Muito embora todas as classificações e concepções sejam importantes para a compreensão da Constituição, vamos analisar no presente artigo as constituições em sentido material/real e em sentido formal.
    Após a análise das duas classificações iremos abordar o tema tendo como objeto de análise a Constituição de 1988, especialmente, para sabermos em quais das duas classificações está a nossa carta inserida.

      2. Constituição em sentido material-real
        Todos os países, em todos os tempos, mesmo os mais primitivos e antigos, pelo sentido material-real, tiveram uma Lei Fundamental. Esta assertiva está baseada na argumentação de que Constituição em sentido real corresponde à descrição e à designação dos fatores reais de poder, conforme ensinou Ferdinand Lassalle: “Assim, pois todos os países possuem ou possuíram sempre e em todos os momentos da sua história uma Constituiçãoreal e verdadeira. A diferença nos tempos modernos – e isto não deve ficar esquecido, pois tem muitíssima importância – não são as Constituições reais e efetivas, mas sim as constituições escritas nas folhas de papel.”[1]
        Para Lassalle e para a grande maioria dos constitucionalistas, o conteúdo das Constituições não são originariamente questões jurídicas, mas sim políticas. Ensinava o socialista que os verdadeiros problemas constitucionais não são jurídicos, mas sim de poder. Considerando que "as forças políticas movem-se consoante suas próprias leis, que atuam independentemente das formas jurídicas"[2], a Constituição escrita ou, como chama o socialista, a folha de papel, caso não reproduza a constituição real e efetiva – que são as forças que  dominam e determinam o destino do país –, sucumbirá, invariavelmente, frente aos fatores reais de poder.
        A propósito, é o ensinamento de Luís Roberto Barroso, quando discorre acerca da Teoria Crítica do Direito, que busca enfatizar "... o caráter ideológico do Direito, equiparando-o à política, a um discurso de legitimação do poder. O Direito surge, em todas as sociedades organizadas, como a institucionalização dos interesses dominantes, o acessório normativo da hegemonia de classe. Em nome da racionalidade, da ordem, da justiça, encobre-se a dominação, disfarçada por uma linguagem que a faz parecer natural e neutra".[3]
        Os fatores reais de poder juntamente com os princípios e a concepção de Direito dominante numa sociedade são sintetizados e inseridos num documento, constituindo-se a Constituição escrita. Os poderes existentes na estrutura social se confrontam na Assembleia Constituinte, onde surge, então, em tempos modernos, a Constituição Formal.
        Em outra passagem de sua conferência, Lassalle expõe que, somando os “... fatores reais do poder, os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem expressão escrita. A partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais de poder, mas sim verdadeiro direito – instituições jurídicas. Quem atentar contra eles, atenta contra a lei, e por conseguinte é punido”[4].
        Em ocorrendo o levantado por Lassalle, a Constituição jurídica retratar a Constituição real e efetiva, ou seja, o ser e não o dever ser, essa passa a ser legitimadora dos atos praticados pelas forças políticas, se tornando instrumento ideológico e de poder dos grupos dominantes da sociedade.
        Nesse sentido, para Lassalle e seus adeptos, a realidade constitucional somente seria transformada por meio de um processo revolucionário, uma vez que, elaborada a Constituição, essa jamais irá mudar e conformar as relações sociais numa sociedade. Somente mudará a Constituição real e efetiva se houver a transformação da correlação de poderes existentes na sociedade, isto é, se os fatores reais de poder estiverem, em sua maioria, no espectro político de outra classe ou de outro grupo.
        O professor da universidade de Lisboa, Jorge Miranda, leciona que a Constituição material: “... comporta (ou dir-se-ia comportar) qualquer conteúdo, torna-se possível torná-la como o cerne dos princípios materiais adoptados por cada Estado em cada fase da sua história, à luz da ideia de Direito, dos valores e das grandes opções políticas que nele dominem. Ou seja: a Constituição em sentido material concretiza–se em tantas Constituições materiaisquanto os regimes vigentes no mesmo país ao longo dos tempos ou em diversos países ao mesmo tempo. E são importantíssimas, mas em múltiplos aspectos, as implicações desta noção de Constituição material conexa com a de forma política”[5].
        Seguindo o raciocínio do constitucionalista português, de que a Constituição material comporta qualquer conteúdo, ocorre a concordância com as lições de Lassalle, de que cada fator de poder forma a Constituição, sendo cada um deles um fragmento da mesma. A ideia de Direito, os valores e as opções políticas dominantes na sociedade, consoante o constitucionalista português supracitado, como conteúdo da Constituição material, nada mais são, na acepção de Lassalle, do que a expressão dos poderes e das suas concepções acerca da Lei Fundamental do país, oriundos da estrutura da sociedade.
        José Joaquim Gomes Canotilho faz mais uma diferenciação do que menciona Jorge Miranda. Expõe Canotilho que a Constituição material possui três distinções: a real[6] (material), a formal e a material (normativo material). A primeira é essencialmente sociológica e, exatamente como expõe Lassalle, "entendida como o conjunto de forças políticas, ideológicas e económicas, operantes na comunidade e decisivamente condicionadoras de todo o ordenamento jurídico"[7]. A Segunda, a perspectiva formal, corresponde a um conjunto de normas que se distinguem das leis infraconstitucionais, por passarem por um processo de criação mais dificultoso e solene. A terceira, normativo material, é o conjunto de normas que referem-se e determinam a organização do poder estatal. Para Jorge Miranda, a Constituição material compreende tanto a organização dos poderes estatais, entre outros aspectos, quanto as forças políticas dominantes na sociedade.
        Na mesma esteira da terceira distinção exposta por Canotilho, Paulo Bonavides entende por Constituição material[8] as normas pertinentes  “...à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais. Tudo quanto for, enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento da ordem política exprime o aspecto material da constituição”[9][10].
        Os consagrados constitucionalistas entendem por Constituição material a forma de organização dos poderes, suas competências, a relação do Estado com seus governados, entre outros aspectos já mencionados. Entretanto, creio que a distinção do professor Canotilho é a mais ampla e correta, por abranger além dessa concepção (quando denomina de constituição material – normativo material), contemplando os ensinamentos de Lassalle quando expõe a  Constituição real como o conjunto de forças dominantes que se manifestam na estrutura social de um país ou, até mesmo, fora das fronteiras dos territórios nacionais.
          3.Constituição em sentido formal
            Ao contrário da Constituição real, que em todos os países se fez presente e efetiva, a Constituição formal é fruto recente do constitucionalismo. A Constituição em sentido formal só veio ganhar relevância após a Independência Americana e a Revolução Francesa, quando se afirmou a necessidade de escrever as garantias e os direitos individuais dos cidadãos, oponíveis contra o Estado Absolutista, obedecendo-se determinada forma.
            No entendimento do professor Celso Ribeiro Bastos expõe que “Constituição formal não procura apanhar a realidade do comportamento da sociedade, como vimos anteriormente com a material, mas leva em conta tão-somente a existência de um texto aprovado pela força soberana do Estado e que lhe confere a estrutura e define os direitos fundamentais dos cidadãos.”[11]
            Para uma Constituição ser caracterizada nesse sentido ou ser enquadrada nessa classificação, entendo que, além de sua elaboração obedecer a uma forma e a um procedimento específicos (mais dificultosos e solenes que as regras para a concepção da legislação infraconstitucional), suas normas devem possuir uma força normativa superior em relação a outras normas do ordenamento jurídico. São Constituições formais, portanto, “...as constituições quando emanadas de um poder constituinte democraticamente legitimado (1) que intencionalmente manifesta a vontade de emanar em acto compreendido na esfera desse poder; (2) de acordo com um procedimento específico; (3) são consideradas como fonte formal do direito constitucional”[12].
            O professor Canotilho coloca um requisito essencial para a Constituição formal, isto é, o poder constituinte democraticamente legitimado. Nesse entendimento, quando a Lei Fundamental advêm de um poder não legitimamente democrático, essa não poderá ser caracterizada de formal por não obedecer a seus requisitos básicos (seriam os casos das Constituições outorgadas[13]). Ora, se a Constituição formal advêm do poder constituinte, irá apanhar tanto o comportamento da sociedade como a própria concepção e o programa de desenvolvimento da mesma, inserido-os num documento como normas jurídicas.
            Pelo exposto, as Constituições classificadas como formais devem, necessariamente, obedecer a alguns requisitos, entre os quais está a ampla participação democrática da comunidade de um país. Essa ampla participação de todos os setores e classes da sociedade ocorre por meio do poder constituinte, cujo seu titular é, em tempos modernos, o povo[14].
              4. Considerações finais
                Em sede de conclusão, sem repisar as conclusões já expostas durante o texto, cabe o retorno ao questionamento inicial se a Constituição de 1988 pode ser classificada como uma Constituição material e uma Constituição em sentido formal.
                Primeiro, considerando-se a Constituição formal como sinônimo de documento escrito não há dúvidas que sim. E não só isso. Nossa Lei Fundamental foi fruto de ampla mobilização nacional dentro de um processo constituinte amplamente democrático, o que dá, sobremaneira, legitimidade ao seu texto.
                Assim, sem sobra de dúvidas, a Constituição de 1988 é formal. No que diz com a concepção material de Constituição, podemos afirmar que as força vivas da sociedade disputam o jogo democrático dentro de suas regras pré-fixadas e não com o intuito de substituir a Constituição por outra. A história recente política demonstra isso, ou seja, sempre foi respeitado o princípio democrático nas escolhas dos mandatários populares que ocupam os cargos públicos eletivos.
                Sendo assim, podemos concluir que a Constituição brasileira pode sim ser classificada como uma Constituição material e formal.
                  5. Referências bibliográficas
                    BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo), Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 358, Nov/Dez, 2001.
                    BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997
                    CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.
                    CONDE, Enrique Álvarez. El Estado Constitucional el Sistema de Fuentes los Derechos y Libertades. In: Curso de Derecho Constitucional. 2. ed. Madrid: Tecnos, v.1, 1996. 
                    CUNHA, Paulo Ferreira. Constituição, Direito e Utopia. In: Boletim da Faculdade de Direito da Coimbra: Universidade de Lisboa.
                    HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabres, 1991.
                    KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
                    LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.
                    MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição Rio de Janeiro: Forense, 2002.
                    VERDÚ, Pablo Lucas. La crisis de la teoría del Estado en la actualidad Federalismo y estado federal La teoría de la Constitución en el marco del Derecho político. Curso de Derecho Politico. 3. ed. Madridv v.2, 1986.


                    Autor: LEONARDO FURIAN, Procurador Federal da Adovocacia-Geral da União - AGU, especialista em Direito Público pela Universidade Nacional de Brasília - UNB, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS.

                    Nenhum comentário:

                    Postar um comentário