Em
tempos em que engravidar ou abandonar uma gravidez é um dos temas principais de
discussão pelo atual momento que a nossa saúde pública vivencia com a
associação do vírus da zika adquirido pela mãe ao nascimento de bebês com
microcefalia, nada mais propício do que evidenciarmos o modelo constitucional
que o nosso país acaba adotando.
Vamos
entender primeiramente o contexto jurídico que o termo enquadra, quando, nas
palavras de Marcelo Neves, em trabalho apresentado para a obtenção do cargo de
Professor Titular da Universidade Federal de Pernambuco em 1992, a legislação simbólica do nosso país “...aponta para o predomínio, ou mesmo
hipertrofia, no que se refere ao sistema jurídico, da função simbólica da
atividade legiferante e do seu produto, a lei, sobretudo em detrimento da
função jurídico-instrumental”.
Mas
vamos entender do que se trata: Entende-se por “simbólico” algo puramente
representativo, quem tem o caráter de um “símbolo”. No contexto em que o
assunto será tratado, iremos abordar a função puramente “simbólica” de textos constitucionais
carentes de concretização normativo-jurídica. Neves determinou ambiguidade entre “símbolo”, “simbólico”
e “simbolismo”. O autor propõe três fatores que caracterizam os tipos da legislação
simbólica, e são eles: a) confirmar valores sociais, b) demonstrar a capacidade
de ação do Estado e c) adiar a solução de conflitos através de compromissos
dilatórios.
Com
a intenção de confirmar valores sociais, Neves defende nesta tipologia que o
legislador assumiria uma posição em relação a determinados conflitos sociais e,
ao consagrar este posicionamento, dar-se-ia a “vitória legislativa” para o
grupo que tem a sua posição amparada na lei, tornando-se superior a concepção
valorativa, e considerada secundária a verdadeira eficácia normativa da lei.
Ainda
seguindo a lógica de classificação dos tipos de acordo com Neves, esta mesma
legislação simbólica teria o intuito de assegurar confiança nos sistemas
jurídico e político. A resposta à sociedade em forma de legislação teria como
objetivo amenizar insatisfações ocasionadas por determinado conflito,
aparentando uma possível solução para aquele problema, de forma a mascarar a
realidade. Neves ainda reforça que “Neste sentido, pode-se até afirmar que a
legislação-álibi constitui uma forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o
sistema político contra outras alternativas, desempenhando uma função ‘ideológica’”.²
Por
último, o autor cita o adiamento da solução de conflitos sociais através de
compromissos dilatórios, que neste caso, considerada como uma consequência relacionada
a questão anterior. Prevendo a ineficácia da lei e transferindo a solução do
conflito para um futuro indeterminado, resta a população e sociedade apenas a
ampliação da ilusão que imuniza o sistema político citado anteriormente.
O Código
Penal Brasileiro considera o aborto como um crime contra a vida nos seguintes
casos: a) aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (Pena de
detenção de um a três anos); b) aborto provocado por terceiro, sem
consentimento da gestante (Pena de reclusão de três a dez anos); c) provocar
aborto com o consentimento da gestante (Pena de reclusão de um a quatro anos). As
exceções serão nos casos em que o aborto for praticado por médicos nas
seguintes situações: a) a gravidez for resultante de estupro e a gestação for
até a 20ª semana; b) se o feto for anencéfalo – em decisão do STF em 2012; c)
se o feto apresentar risco de vida à mãe (neste caso pode ser feito em qualquer
ponto da gravidez). Segundo juristas, os casos de fetos com microcefalia não se
encaixam na mesma exceção daqueles com anencefalia porque a microcefalia não é
incompatível com a vida.
Recentemente
alguns posicionamentos do médico mais popular do Brasil, conhecido por quadros
na televisão, vídeos em redes sociais e best-sellers como Estação Carandiru, o
Dr. Dráuzio Varella, trouxeram à tona um dos exemplos relacionados a esta
associação. Em defesa de que o aborto já é livre no Brasil, e que só é ter
dinheiro para fazer em condições razoáveis (e que tudo diferente desta
realidade fé falsidade e hipocrisia), coloca em evidência a concepção
valorativa que a legislação sobre o aborto do nosso país foi legislada. O
médico afirma ainda em entrevista que "a mulher rica faz normalmente (o
aborto) e nunca acontece nada. Já viu alguma ser presa por isso? Agora, a
mulher pobre, a mulher da favela, essa engrossa estatísticas. Essa morre”.³ Ainda
fazendo relação ao poder das massas e da posição valorativa de grupos, o médico
defende de que não considera correto que a maioria possa impor sua vontade sem
respeitar a opinião das minorias, desrespeitando a democracia.
Dentro
do contexto epidêmico cheio de incertezas vivenciado, a microcefalia vem sendo
diagnosticada em média na 28ª semana de gravidez, com margem de erro de cinco
semanas. De acordo com a Folha de São Paulo4, algumas grávidas
brasileiras estão recorrendo ao aborto ilegal ao primeiro sinal de infecção
pelo vírus da zika, mesmo sem confirmação se o feto tem ou não microcefalia.
Três médicos relataram a Folha casos de mulheres que já tinham tomado esta decisão,
sendo as mesmas casadas, com educação de nível superior, boas condições
financeiras e que tinham planejado a gravidez e que, com o desespero da
possibilidade da criança nascer com má formação, optaram pelo aborto. As
gestações estavam entre a 6ª e 8ª semana de gravidez e foram interrompidas com
o misoprostol (Citotec). O medicamento é obtido no mercado ilegal com disponibilização
apenas a hospitais. Sua venda é proibida nas farmácias desde 1988.
Com
foco na garantia de direito de escolha das mulheres e na saúde das mesmas, a
antropóloga Débora Diniz do instituto de bioética Anis, atualmente faz parte de
um grupo que prepara uma ação similar para pedir ao Supremo Tribunal Federal a
legalização do aborto em gestações com bebês com microcefalia. Ela debate que a
responsabilidade do Estado em garantir a erradicação do mosquito não aconteceu,
e o responsabiliza. Trata também que, constitucionalmente, as mulheres não
poderão ser “penalizadas pelas consequências de políticas públicas falhas”5,
entre outras iniciativas.
O
documento que está sendo preparado deve argumentar que a ilegalidade do aborto
e a falta de políticas de erradicação do Aedes ferem a Constituição Federal em
dois pontos: direito à saúde e direito à seguridade social. A argumentação deve
ainda destacar a vulnerabilidade específica de mulheres pobres – já que a
epidemia ainda se concentra em áreas carentes do país, especialmente no
Nordeste.
"É
preciso garantir a todas as mulheres, e não só às que têm acesso a serviços de
saúde ou podem pagar um aborto ilegal", diz Débora à BBC Brasil.
"Autorizar o aborto não é levar as mulheres a fazê-lo. Quem tem dinheiro e
quer já faz. Justamente quem tem mais necessidade não pode ser privado do
direito de escolher sobre a própria vida"5, afirma.
E
durante essa discussão, ainda temos um ponto relevante a considerar:
Toda
esta problemática enfatiza não só o modelo ultrapassado de nossa legislação simbólica
voltada para o aborto envolvido por várias questões culturais e políticas,
assim como enfatiza a necessidade de termos um olhar mais fiel e confiável numa
constituição que de fato, amplie a cidadania, elabore mais leis concretas e que
o judiciário tenha mais ações que apoiem a implementação de efetividade das
normas constitucionais vigentes, dando a sociedade algo que faça sentido,
superando seu caráter puramente retórico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
¹ O referido tema da “Constitucionalização
Simbólica” foi exigido, dentre outros, no edital do IV Concurso para ingresso
na Carreira de Defensor Público do Estado de São Paulo (2010). A apresentação
se dará de acordo com o trabalho: Marcelo Neves, A constitucionalização
simbólica, Col. Justiça e Direito, passim. O tema também foi objeto do programa
“Aula Magna” da TV Justiça e pode ser assistido em: http://www.youtube.com/watch?v=15V5uTLfi2c
(“A Constitucionalização Simbólica Revisitada”).
²
Marcelo Neves, op. cit., p. 40
³ Entrevista Drauzio Varella
a BBC Brasil acessada em http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/02/160201_drauzio_aborto_rs
na data de 02/02/2016 às 16:57
4 Reportagem na Folha de São Paulo acessada em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/01/1735560-gravidas-com-zika-fazem-aborto-sem-confirmacao-de-microcefalia.shtml
na data de 02/02/2016 às 16:34
5 Reportagem de Ricardo Senra, sobre o grupo prepara ação
no STF por aborto em casos de microcefalia em notícia na BBC Brasil, acessada
em http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160126_zika_stf_pai_rs na
data de 03/02/2016 às 10:25h
Código Penal Brasileiro
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